13/01/2011
Igor Natusch
China compra dívidas públicas da Europa e amplia presença no sistema financeiro mundial
Presidente da China, Hu Jintao, é recebido pelo primeiro-ministro de Portugal, José Sócrates, em novembro de 2010 | Foto: Ricardo Oliveira – GPM
Igor Natusch
Em um momento de graves dificuldades para a economia europeia, a China tem se mostrado como o principal comprador capaz de injetar recursos no continente. Depois de adquirir cerca de 20% da dívida pública da Espanha, a potência econômica oriental direciona suas reservas ao combalido sistema financeiro português, e acena com ações semelhantes em países como Grécia, Bélgica e Itália. Mais do que um auxílio, a compra de títulos de dívida pública desses países fortalece ainda mais a economia chinesa, afetando de forma significativa o equilíbrio político internacional. Porém, segundo especialistas consultados pelo Sul21, a ajuda ainda é insuficiente para a dimensão das dívidas, e será preciso muito mais dinheiro para impedir que a Europa entre em colapso.
Nesta quarta-feira (12), a agência Dow Jones adiantou que Portugal já teria vendido à China, de forma direta, 1,1 bilhão de euros em dívida pública de longo prazo. A fonte, segundo o Dow Jones, é anônima, já que a China proíbe divulgação de dados concretos sobre as negociações com países europeus, sob pena de os acordos serem cancelados. De qualquer modo, o auxílio chinês surge em um momento crucial para os portugueses, uma vez que os três maiores bancos privados do país (BES, BCP e BPI) já encararam, nos primeiros dias de 2011, prejuízos da ordem de 839 milhões de euros. Isso equivale a perdas de 16,5 milhões por hora.
Para tentar controlar a crise, o Ministério das Finanças de Portugal confirmou para quinta-feira (13) uma operação de colocação privada da dívida pública do país. Apesar das recusas em dizer qual seria a contraparte no negócio, há uma quase certeza nos mercados internacionais de que será a China o principal, se não único, comprador da dívida. A estimativa do governo português é de que sejam necessários 46 bilhões de euros em financiamento, tanto para minimizar o déficit das contas públicas quanto para amortizar as dívidas do país.
Fraquelli: “Muitos países, e muita dívida”
Economista da FEE, Antonio Carlos Fraquelli lembra que a moeda chinesa, o yuan, está subvalorizada e em um momento de grande liquidez. Isso geraria reservas gigantescas para o país, além de saldos fantásticos e grande volume de exportações. “No momento, eles (China) possuem as maiores reservas do mundo, e geralmente as investem em títulos do tesouro americano, que são de risco zero”, explica Fraquelli. A China é atualmente a principal detentora de títulos de tesouro dos EUA (treasuries), seguida pelo Japão.
Por outro lado, a Europa vive grave momento econômico, com muitos países incapazes de alcançar as metas de déficit público, que deveriam se manter na margem dos 3% ao ano. “Os investidores até compram os títulos de dívida desses países, mas exigem uma taxa de juros muito maior, já que são títulos com risco bem mais elevado”, destaca. Com isso, o risco-país se eleva, numa cadeia que se mostra desastrosa para a saúde econômica de vários países europeus.
O referencial para o “spread” (diferença entre o potencial de captação de recursos das instituições financeiras e o valor que cobram dos clientes) europeu está nos títulos da Alemanha. Países como Grécia, por exemplo, alcançaram patamares tão baixos nessa comparação que a própria Alemanha bancou a dívida pública da economia grega, medida adotada posteriormente pela União Europeia como um todo. “Mas são muitos países e muita dívida”, diz Antonio Carlos Fraquelli, dizendo que simplesmente não resta escolha à Europa a não ser contar com os investimentos da China.
“Como o dinheiro do FMI e do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) não são suficientes para todos os países que estão em crise, a Europa precisa buscar recursos em outro lugar”, explica o economista Ricardo Amorim, presidente da Ricam Consultoria. Como os EUA estão em uma “situação complicada” e países como Portugal, Espanha, Itália e Bélgica precisam de auxílio imediato, resta contar com a colaboração chinesa.
Segundo Ricardo Amorim, a China deseja ser reconhecida pela comunidade europeia como uma economia de mercado. Essa seria, segundo o especialista, a principal motivação para a aquisição dos títulos europeus. “A compra da dívida pública desses países acaba sendo um passo em direção à Europa, além de facilitar a entrada de produtos chineses no mercado de lá. A Europa pode entrar em colapso muito em breve, e isso teria impacto negativo sobre as exportações chinesas”, diz Amorim.
André Scherer, professor de economia da PUCRS, resume a questão em poucas palavras. “A China tem os recursos, e a Europa as dívidas”, diz ele. A contrapartida esperada pela China, segundo ele, está no sentido de consolidar sua posição e, em um segundo momento, ampliar sua presença em organismos multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial. “A China ajuda os países em crise, mas isso faz com que esses mesmos países sejam deslocados para uma posição secundária nesses organismos. É um troca relativa de posições, na qual a Europa perde espaço e os países orientais, em especial a China, sobem. Trata-se de um jogo político internacional”, explica Scherer.
Euro deve cair mais do que o dólar
“Os títulos dos EUA não são, nesse momento, um bom investimento, já que o dólar está caindo”, diz Ricardo Amorim. Mesmo com essa oscilação da moeda americana, o economista da Ricam Consultoria não acredita que a ação chinesa tenha grandes efeitos sobre a moeda do país, o yuan. “O objetivo não me parece ser reforçar a moeda chinesa, e sim evitar que o euro caia ainda mais”, afirma.
André Scherer, da PUCRS, explica que o yuan é uma moeda regulada pelas bandas cambiais do país asiático e não é uma moeda livremente conversível. “Não é o mercado internacional que decide a valorização da moeda”, assegura. Para ele, o investimento chinês na Europa não pode ser atribuído apenas – ou primordialmente – à queda do dólar, explicando-se de forma mais consistente dentro das relações de força da política internacional. “O euro tende a ter uma performance ainda pior do que o dólar nos próximos anos”, argumenta. Segundo ele, alguns países que devem vender títulos para a China estão com a economia tão fragilizada que é grande a possibilidade de que acabem não podendo honrar os compromissos assumidos nessa negociação. “É uma compra, em vários casos, bastante arriscada. E assumir esses riscos vai além do âmbito meramente econômico, sinalizando um esforço chinês em ter maior presença internacional”.
Nesse sentido, Antônio Carlos Fraquelli, da FEE, aponta a possibilidade crescente da Europa criar instituições para controlar as oscilações econômicas no continente. “O (presidente da França) Sarkozy propôs, por exemplo, uma secretaria de Tesouro continental, específica para controlar o Euro”, lembra. Embora possa ser uma alternativa “inteligente” para gerenciar os orçamentos europeus, Fraquelli adverte que a reação dentro dos países constituintes da União Europeia não tende a ser das melhores. “Os países não querem abrir mão de sua autonomia econômica, e os líderes que eventualmente concordem com isso podem perder as eleições futuras. É um ônus que ninguém parece muito disposto a pagar”.
Efeito tópico
O economista Antônio Carlos Fraquelli diz que o Brasil não tem, de forma direta, motivos para se preocupar com a compra de dívidas europeias pela China. “O Brasil tem reservas, ainda que em quantidade bem inferior à China, e vive um momento bastante sólido”, diz. A preocupação, no caso, seria indireta. “A questão é que a economia europeia precisa se recuperar para que o Brasil possa aumentar seus índices de exportações”. André Scherer, por sua vez, acredita que o Brasil será, mais cedo ou mais tarde, chamado a participar do resgate econômico da Europa. “Isso já se deu com o aumento da participação brasileira no FMI, por exemplo. Como o Brasil detém reservas, existe essa tendência”.
“Para o Brasil, é importante que não haja calote da dívida europeia”, afirma Ricardo Amorim. Nesse sentido, a ajuda oferecida pela China é “ótima”, segundo o economista, já que diminui os riscos de uma nova crise global. Porém, Amorim adverte que a ação dos orientais não afasta plenamente o risco de desdobramentos graves para a economia mundial. “Para que as compras da China solucionassem de fato (a dívida europeia), teríamos que estar falando de valores muito maiores, algumas centenas de bilhões a mais”.
André Scherer concorda. “No momento, o efeito (das compras feitas pela China) é tópico”, diz o economista. Para ele, a quantidade de títulos de dívidas públicas adquiridas pelo país asiático é muito pequena, não produzindo efeito substancial dentro da dificuldade vivida pelos países europeus. “Não temos notícias claras com relação à real extensão das reservas chinesas. Mas talvez, com a ampliação da crise, os valores envolvidos também sejam maiores. O que, é claro, vai ampliar a contrapartida esperada pela China”, adverte.