Entrevista de Ricardo Amorim para a São Paulo Lifestyle Magazine.

Revista São Paulo Magazine
04/2012


Economista avalia que a crise financeira minou a capacidade de consumo de americanos, europeus e japoneses. Segundo ele, o inverno chegou. É hora de as cigarras trabalharem e as formigas cantarem.

 
Em sua avaliação, o que muitos apontam como o início de um assustador declínio econômico não seria apenas um interlúdio de adaptação diante de um novo cenário? Há dois anos, escrevi um artigo chamado “ A tragédia europeia”, em que prognosticava que “ou a zona do euro se despedaça ou a crise da dívida pública vai piorar muito. Provavelmente, os dois ocorrerão”. Quase me internaram.
 
De lá para cá, minha convicção aumentou. A tragédia grega foi só o início do acirramento das tensões no Velho Continente. A fim de expandir mercados para exportações e reduzir seu custo de financiamento, os países da zona do euro abriram mão de controle sobre política cambial e monetária.
Só que cada um manteve sua soberania política e fiscal. Seus governos taxam cidadãos e gastam dinheiro público como bem entendem e, quando gastos ultrapassam receitas, emitem dívida livremente.
 
Essa dicotomia entre políticas monetária e cambial idênticas e políticas fiscais independentes se sustentou até aqui por duas razões. Nos anos que antecederam o colapso do mercado imobiliário americano, época de dinheiro abundante, investidores faziam vistas grossas a desequilíbrios fiscais. Além disso, até 2007, esses desequilíbrios eram bem menores.
Ao eliminar trilhões de dólares da riqueza mundial, a crise levou investidores a se preocuparem com a quem emprestam.
 
Para piorar, a situação fiscal dos países europeus se deteriorou, em alguns casos, muito. Governos viram-se forçados a socorrer instituições financeiras à beira da falência e consumidores endividados até o pescoço, muitos deles sem emprego. Para evitar uma recessão ainda mais profunda, aumentaram muito os gastos e déficits, que em diversos casos já não eram pequenos. Para financiar a gastança, emitiram-se quantidades enormes de dívida pública. Os investidores começaram a desconfiar que dívidas e déficits tão grandes dificilmente serão pagos e cortaram o financiamento, bem na hora em que os europeus mais precisavam.
Surge a insustentabilidade da zona do euro. Países que, no passado, conseguiram sair de uma situação parecida, com a dos chamados “porcos” europeus – da sigla Pigs, iniciais de Portugal, Irlanda/Itália, Grécia e Espanha em inglês –, sem ter de passar por um calote, adotaram um mix de estímulo monetário, desvalorização cambial, ajuste fiscal e ajuda externa. É chegada a hora de repensar o jeito de fazer negócios, fugindo aos antigos modelos? Ao contrário do que muitos dizem, não há nada de surpreendente nas sérias dificuldades econômicas vividas por EUA e Europa.
 
Surpreendentes são os suicídios políticos que antecipam e potencializam dificuldades que já seriam graves. Os melhores exemplos vêm da Itália e dos EUA. Inevitavelmente, a crise europeia contaminaria a Itália no futuro. População envelhecida e em queda, uma das dez menores taxas de crescimento econômico e um dos maiores níveis de dívida pública do mundo fazem da Itália um alvo óbvio. Nos EUA, a antecipação das preocupações foi ainda mais brutal. Por ter a moeda mais aceita no planeta, os EUA eram considerados porto seguro, apesar de terem níveis de déficit público e de expansão da base monetária que se igualam aos do Brasil no período hiperinflacionário.
Eis que um impasse no Congresso para a elevação do limite de endividamento público chama a atenção geral de que o rei está nu. Não fosse a inexequível exigência dos republicanos de que todo ajuste fiscal aconteça por meio de corte de gastos públicos, sem nenhuma reversão dos cortes de impostos realizados pelo governo Bush, em vez das seguidas reduções de classificação de risco por parte das agências de rating, poucos haveriam notado os pés de barro do gigante. A exposição desnecessária das fragilidades americanas em escala global demonstra a total falta de compreensão pelas lideranças americanas da seriedade da situação em que o país se encontra. A verdade é que períodos prolongados de sucesso econômico levaram esses países à incapacidade de ver a magnitude dos seus desafios.
 
No Brasil, décadas de desempenho econômico pífio alimentaram a ideia de que o país não pode dar certo. No mundo desenvolvido, o sucesso gerou a crença de que seus países não podem ser atingidos por grandes crises – coisa de repúblicas de bananas –, incapacitando-os a impedi-las ou limitá-las, tornando-as inevitáveis.
Megatransformações da economia mundial condenaram vários países emergentes, incluindo o Brasil, a crescer e, ao mesmo tempo, criaram obstáculos significativos às economias dos países ricos. Estamos vivendo um momento de diminuição de diferenças na economia mundial, com países mais pobres crescendo de forma acelerada, estimulados pela fome chinesa e indiana de matérias- primas, enquanto países ricos têm de lidar com um processo de redução de um endividamento crescente ao longo das últimas três décadas, que, agora, tornou-se insustentável. Costumo brincar que americanos e europeus vão estagnar em berço esplêndido, mais ou mesmo como aconteceu com o Japão nas duas últimas décadas. O sonho americano ainda está para ser sonhado?
Imagine um mundo no qual os produtos são feitos nos Estados Unidos e consumidos na China. Impossível? Pois saiba que você vai viver nesse mundo nos próximos anos. A China tornou-se o grande centro de produção global ao longo dos últimos 30 anos. Nesse período, as exportações chinesas passaram de meros 5% a 37% do seu PIB. Ao comprar um brinquedo, roupa, telefone ou qualquer outro bem de consumo, todos nos acostumamos com a etiqueta Made in China. Boa parte dos produtos chineses terminava nos Estados Unidos, cujo consumismo, movido a crédito farto, parecia não ter fim. Aliás, não tinha mesmo.
 
Na terra do Tio Sam, quando o limite do cartão de crédito acabava, era só pedir um cartão novo e rolar a dívida do primeiro. O hábito de poupar foi abolido no país. A família americana média gastava mais do que ganhava, todo santo mês. Enquanto as cigarras americanas gastavam, as formigas chinesas poupavam. Desde 1962, o consumo em proporção do PIB despencou na China, passando de 72% para 36%. Os consumidores americanos viram mais de US$ 1 trilhão em crédito sumir. Nunca antes na história daquele país, junto com o crédito, foram-se os empregos.
 
Oito milhões e meio de americanos ficaram sem emprego desde o início da Grande Recessão – como a crise foi apelidada por lá. Sete milhões deles estão desempregados há mais de seis meses, quase o dobro do recorde anterior. Certamente, o crescimento da China vai se desacelerar ao longo desta década por razões econômicas e demográficas.
Aliás, parece já estar se desacelerando. Ainda assim, um crescimento próximo a 7% ao ano, ou mesmo 6%, em média, dará inveja a praticamente todos os demais países do planeta. O Brasil tende a se tornar um grande consumidor ou grande competidor no mercado externo? O Brasil atualmente se firma como um enorme mercado consumidor e vai se tornar maior ainda. Em venda de automóveis, por exemplo, o Brasil já é o quarto mercado mundial, atrás apenas de China, EUA e Japão e, nos próximos anos, vai ultrapassar o Japão.
Apenas entre 2005 e 2010, em meros cinco anos, 45 milhões de brasileiros deixaram as classes D e E – as duas mais baixas. Isso equivale a toda população da Espanha. No mesmo período, 55 milhões de brasileiros ingressaram nas classe A, B e C. O Brasil ganhou toda uma Itália de novos consumidores efetivos. A renda de toda a população brasileira cresceu, e não foi pouco, à medida que o país se beneficiou da fome chinesa pelas nossas matérias-primas e de baixas taxas de juros globais. Pelas minhas projeções, teremos cerca de 30 milhões de brasileiros ingressando nas classes A, B e C até 2015.

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